Majestade de um Rei sem Reino

 

De criança me lembro o sol,
O vadio correr atrás da bola,
Um negrinho a festejar no futebol,
O sonho de gol que nos consola.

Toda cidade vislumbra
No primeiro moleque, que no peito
Amortece nossas frustrações incrustadas
Num círculo costurado de ar e esperança,
a glória, um pelé, um deus...
O sucesso de que não soubemos capazes.

Arre! Ufa ! Com todos os diabos,
A fama já se aproxima, avizinha,
Nos ilude.
O crioulinho progride,
Artilheiro regional,
Medalhas e prêmios,
Tapinhas nas costas,
Nome estampado
Nos pasquins da esquina.

O filho humilde
Presenteia a mãe, com suor, gols, trabalho e luta,
Uma televisão em branco-preto.

Efêmera glória, etéreo sucesso,
A fama arquivada prematuramente.
O vazio da realidade,
Da sorte, dos amigos,
Portas fechadas
Nos quintais prósperos da alegria.


Ao alarido público,
Alquebrado crioulo,
Caminha,
Silencioso e cabisbaixo,
Indiferente às manifestações
Que não consagram,
Tentam denegrir.

Negros são os caminhos,
As ruas, os rostos,
A crueldade humana.

E o negro, ainda jovem; segue,
Bornal a tiracolo,
Faixa enviesada sobre o peito,
Que não ostentam mais vitórias,
Que não anseiam inúteis troféus,
Nem demonstram antigas cicatrizes,
Que o cotidiano amargo
Cismou de abraça-lo.

Bornal prá guardar peixes
Que os rios já não têm.

Não vejo lágrimas em suas rugas.
Seu olhar já não exprime
Nem piedade.
Seus lábios largos
Conseguem abrir um sorriso.
De dor ?
De sonho ?
De enigmas ?
Da certeza angélica dos céus ?

Hoje mãos castigam, açoitam,
Vozes gracejam e dispõem
Da desgraça alheia.
Patas ocultas, grunhidos
De amizade falsa,
Ressurgem à sombra da luz,
Em farta demência do dia-a-dia.

Seriam menos amigos,
Os que agora recolhem
Suas mãos receosas
Da lepra do fracasso
Que decepa cabeças e caminhos ?

Cuspo minha repugnância.

De todo esplendor de uma carreira
Vigorosa, triste e fugaz,
Meu coração de criança guarda
Com carinho e ternura,
Um gol de placa.

O delírio que me marca
Saudoso na vibração de praxe,
São emoções sinceras
A explodir no ar.

Obrigado Senhor,
Pelo ELO-IR de viver,
Conviver,
Mesmo sendo pequeno,
Com semelhante tão MÁXIMO.

Ildefonso (Dé) Vieira - 26/05/82

EXTRÁIDO DO LIVRO "SAUDADE SAPEENSE" - páginas 17 e 18


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