Num domingo, de 1.963, mais precisamente em 15 de dezembro, dois jovens mais para criança que adolescente, brincam com uma bola de borracha, furada, meio-murcha, meio-cheia, num terreno mais para plano que irregular, coberto de grama nativa, aqui, acolá e mais além, touceiras de capim e bastante "vassoura", erva daninha, comum na região e conhecida em outras como malva-branca.
Trata-se do final do perímetro urbano, na Rua Tiradentes, próximo a uma fábrica de massa de tomates desativada, logo no início da estrada rural que vai para o Valão e a Mata da Silvéria. Hoje, neste local, reside o Zé Bento e sua família. Cabras, vacas, cabritos e bezerros, harmoniosamente, ali pastoreiam, sob o olhar sempre atento de seu filho, o Grilo. Isto em Guidoval.
Mais longe dali, no Maracanã, uns 285 km, no Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, quem maravilhas mesmo faz, é Marcial, um goleiro vindo destas "geraes", que fecha o gol, num empate, de zero-a-zero, defendendo o Flamengo, num jogo com o Fluminense, contribuindo de forma decisiva para mais um título do rubro-negro carioca.
Os dois rapazolas, flamenguistas por convicção e precoce inteligência, face ao fato de serem filhos de pais botafoguense e vascaíno, só comemoram o título quando espocam os primeiros foguetes na cidade, colorindo de sons a tarde-noite.
Antes disso, porém, entre um chute na bola e o arrancar de arbustos, os dois guris cismam que aquele local era propício à construção de um campinho de futebol.
Da cisma à ação, convocaram a "pivetada de Niterói", melhor; a criançada de depois da ponte, da pracinha e adjacências.
Partiram, assim, todos a capinar, aplainar e acertar murundus, arrancar vassouras, ervas daninhas e matos indesejáveis. De bambu gigante, fizeram as balizas para a meta.
Demarcaram o campo. No gol, colocaram redes, que eram utilizadas para colher e cercar mangas, em locais de declive acentuado.
A sede da fábrica de massa de tomates virou o local da concentração, com jogos de preguinhos, botão e damas. Para literatura, álbuns de figurinhas, com os jogadores famosos da época, gibis e almanaques. Não tinha as revistinhas do Carlos Zéfiro, a inocência da idade, ainda não tinha despertado para a luxúria e libidinagem.
Para comprar a bola, fizeram a famosa e famigerada "ação entre amigos", contando com cooperação dos incautos, incrédulos e desavisados, destacando-se a benevolência maior do Dr. Mirandolino Pinheiro, de férias na cidade.
Houve até sobra, devidamente não contabilizada, para uma sessão no cinema do Severino Occhi.
Ia guardar segredo da identidade dos dois meninos para o final do relato, mas diante do pequeno deslize, de umas delas, vou revelá-la já. Uma das crianças, do início da história, era eu, o Dé do Zizinho. A outra fica para o final.
O nome do filme não me lembro. De graça até tapa na testa. Talvez o Gilberto Pinheiro, companheiro deste desvio financeiro recorde do filme. Duvido.
Quem mais deve ter gostado e aprovado a nossa idéia, por certo, foi o Sô Nestor Franco, pois mudaríamos o nosso território de "peladas" da pracinha para o novo campo. Não que Sô Nestor detestasse futebol, até pelo contrário, pois sempre devotou o seu préstimo e labor ao Cruzeiro de Guidoval. Ainda hoje é conselheiro participante e ativo nas decisões do clube.
Acontece que em nossos "rachas", nem sempre a bola atendia e correspondia aos nossos comandos, digo pontapés; adentrando, diversas vezes, ao dia, atletas e bola, o seu estabelecimento comercial, uma venda de secos e molhados; tudo isto sob o seu olhar paciente e cúmplice, de quem entende, da vida, de crianças e seus desatinos.
O nome do time foi fácil. Veio da praça, onde morávamos, daí, Getúlio Vargas Futebol Clube.
O uniforme, dentro do parco orçamento, ficou nas singelas camisetas, compradas, a preços módicos, na Casa Sampaio. Ou foi na Loja do Tatão Balbino?
A camiseta branca e lisa não fazia jus à grandeza do clube que acabara de se formar. Necessitava de um detalhe, um adereço. Não restava a menor dúvida a ninguém.
Das mãos de D. Tita, minha mãe, veio a solução, junto com a sobra de um retalho, que toda costureira que se preze tem, no nosso caso, verde.
As camisetas ganharam contorno, arremates, numeração e um orgulhoso GVFC esmeraldino.
Não foi fácil, chegar a este ponto, mas por certo desafiante e divertido. Havíamos deixado de lado o "pique" à noite, também pretexto para visitar as frutas dos vizinhos, principalmente as deliciosas laranjas do quintal do Sô Astolfo Mendes. Faltava tempo para o jogo de birosca, que as crianças de hoje teimam em chamar de bolinha de gude. Falta de originalidade. Cadê tempo para soltar papagaio, nadar escondido no Chopotó, fisgar uns lambaris no Corguinho (Córrego do Rosa) ou rodar pião.
À noite, exaustos, todos se reuniam, à porta do Armazém do Sô Raimundo Estulano. Comentava-se o dia que se encerrara e traçava planos para o dia seguinte. Até que as mães atentas, nos punham para casa, lavar os pés e dormir. O banho já tinha sido tomado, antes do jantar.
Faltava inaugurar o campo, dizer tratar-se de estádio, seria pretensão e poderia parecer mentira, desmerecendo e desacreditando o que até aqui foi escrito.
Campo devidamente batizado de José Pinheiro, à época, o edil mais votado nas últimas eleições, num tempo em que os vereadores não recebiam um centavo, para prestar relevantes serviços ao município.
Nossa escolha, contudo, não teve nenhum caráter político, até porque era um assunto que não nos interessava, e sim uma homenagem ao administrador do terreno pacificamente invadido por nossos sonhos e fantasias pueris.
Precisávamos de um adversário à altura de nosso entusiasmo e prepotência. Identificamos no time do Zé Júber o alvo de nossa pretensão, uma vez que ele dirigia uma verdadeira seleção da cidade, excetuando-se, é claro, os atletas do brioso GVFC.
O time do "Largo", jogava no campinho, mixuruca, existente na Praça Santo Antônio.
Aliás preciso abrir um parêntesis para dizer que Guidoval deveria preservar sempre este espaço, pois serviu na década de 20 e 30, para abrigar o primeiro campo de futebol de Guidoval.
Depois veio o imponente Grupo Escolar. Mais tarde o campinho, "furreca", a que me referi antes, sendo ainda palco de carnavais imortais. Como esquecer as Touradas, com destaque para a do Mário Silva, e o duelo de Testa-de-Ferro e Moreninho enfrentando o valente Escovado, de propriedade do João Vitório, pai do Luiz Boi, irmão do Pescuma. O Escovado não olhava o pano vermelho, com o qual os toureiros tapeiam os bovinos, fixava-se, sim, em seu oponente e pôs diversos toureadores, pretensamente valentes, a correr, para o deleite das platéias.
Tinha, de vez em quando, os Parques de Diversão, com carrosséis, barquinhas e os bilhetes elegantes, com declaração de amor eterno.
Não posso deixar de mencionar os inúmeros Circos, inclusive o famoso Bartolo, que provou e aprovou a hospitalidade e solidariedade guidovalense, depois de destruído por uma enchente temperamental do tranqüilo Chopotó.
Isto tudo, antes de se tornar uma praça urbanizada. Hoje abriga, o zum-zum-zum de nossas festividades e até do cotidiano e um parquinho mal cuidado. Merecia mais atenção, das autoridades, a Praça Santo Antônio. Não há geração em Guidoval, que não tenha uma boa história para contar do Largo.
Fecho o parêntesis e volto ao assunto principal.
O motivo de o Zé Júber contar com tantos garotos bons de bola, talvez fosse as requisitadas caçarolas, brevidades e refrigerantes que sorrateiramente sumiam das prateleiras da Padaria do Felismino, seu pai, e abasteciam gulosos glutões. Isto dizem as más línguas, até as boas, porque não?
Estou fugindo do que interessa. O fato é que conseguíramos, valentes oponentes.
O dia marcado, não poderia ser outro, que domingo, após a missa, com uma pausa intermediária, na porta da igreja, para ouvir a sabedoria do saudoso Sô Trajano Viana, a concorrer com o sermão pregado pelo também saudoso Padre Oscar de Oliveira, idealizador e construtor da nossa grandiosa Matriz de Santana.
O dia exato ? Aí já é querer demais da minha memória que nunca foi muito boa em reminiscências.
E qual o problema ?
Bom! O Plínio Pinheiro, além de ser filho do administrador do terreno e nome do campo, acreditava que era goleiro. Não houve outra alternativa a não ser escalá-lo, na ingrata posição, onde nem grama nasce.
Naquele tempo, não era usual os pais irem ver, incentivar os filhos na prática de qualquer esporte, inclusive o bretão. E olha que tínhamos intimidade com a redonda.
Não é como hoje, que fica aquele monte de pais corujas, babando por qualquer coisinha que seus filhos, cabeças-de-bagre, fazem.
Desculpe o desabafo, mas quantos pais de outrora não presenciaram o talento nato de seus filhos. Deixemos o queixume de lado.
Lá pelos vinte e cinco minutos, não dê muito crédito a este tempo, poderia ser mais ou até menos, teve um lateral, a favor do time da casa, no campo de defesa do nosso GVFC.
O Teixeirinha, valente lateral esquerdo, que depois, também, brilhou no Cruzeiro de Guidoval, apresentou-se para bater o lateral.
Fez tudo como o figurino manda. Repôs a bola em jogo com galhardia, "lordeza e aplomb".
Na falta de alternativa, atrasou a bola para o nosso goleiro.
Com pose, o inexperiente Plínio abaixou para pegar a pelota. Esta, entretanto, tinhosa, traiçoeira, como sói à bola, escorregou por entre as suas mãos e pernas, alojando-se cínica e mansamente no fundo da rede. Um a Zero para o adversário.
O gol inaugural de nosso campo, construído com suor e zelo, foi contra. Pior, de um lateral batido por um companheiro nosso. Pior ainda, por entre as pernas do nosso goleiro.
Depois o jogo continuou. A vida continua.
Resultados esportivos, às vezes, nem tanta importância têm, mas recordações gratas da infância ficam para o resto da vida.
Bom, comecei a escrever este fato ao deparar-me com uma foto amarelada, corroída pelo infatigável tempo, contendo os garotos do Getúlio Vargas Futebol Clube.
Nela está, de pé; Tarcísio Cusati, Teixeirinha, Fabinho Estulano, Quinca Ribeiral, Roberto Pinheiro e o Jorge Sobral Venâncio, e agachados: Dé, sobrinho do Pujonas, Aurinho Ribeiral, Gilberto Pinheiro e Nélio Queiroga.
Antes que eu me esqueça, como prometido, a outra jovem criança, o flamenguista, do início da narrativa, é o meu amigo, Jorge Sobral Venâncio, hoje médico conceituado em toda a região, a quem reverencio estas linhas.
Não sei se lembras, Jorge? Passaram-se mais de 33 anos, porém parece que foi "antonte".
Talvez nem tenha relevância, mas o pai botafoguense é o Dr. Jair Dutra Venâncio e o vascaíno, o meu saudoso pai, o prefeito, José Vieira Neto, Zizinho do Marcílio
Ildefonso José Vieira - (Dé do Zizinho do Marcílio)
B. Hte 06/03/97