DE  COMO  EU  AMO  UMA  CIDADE

Marcus Cremonese para Terezinha M. Reis

É a cidade que repousa com sua história
desde a "curva da morte" - assim a chamo
pois toda vez que por lá passo de partida
parece que morro - até o "Vai-e-Volta".
Pelo outro lado, vai da "Santa Cruz"
Até o fim da "rua do Campo".
Nada de coordenadas geográficas.
Guidoval dispensa termos exatos
quando dela se fala, porque a poesia
não tem medidas.
E Guidoval é poesia pura.
É uma cidadezinha tão grande
que cabe inteirinha
dentro do meu coração.
E só os que têm coração grande
têm a felicidade de amar a Guidoval.
 
Um rio velho caminha sonolento
as suas águas escuras.
Parece que nesta época ele veste luto
por todos aqueles que não sabem
o que é Guidoval ou não sabem
amar Guidoval.
Cedinho o sol acorda e, sempre de bom humor,
lava o rosto no orvalho dos canaviais
e em seguida se enxuga na enorme toalha azul de céu.
O dia já está de pé e Guidoval
não tem hora certa para fazer música.
Cedo, cedo, já começa a sinfonia
dos carros-de-bois, com seus gemidos
tão doces que fazem corar de vergonha
qualquer Stradivarius.
 
 
As ruas logo se povoam de crianças descalças
- nada mais humano que crianças descalças -
que vão à escola, bornal a tiracolo.
Nada de apitos e sirenes que servem somente
para acordar o dia de sobressalto.
( As cidades grandes cismaram
que o dia precisa de despertador ) .
As lavadeiras vão à cachoeira
e ali o dia entorna cristalino
enquanto as crianças, brincando nas pedras,
desfrutam, os mistérios
da vida simples, dos bambuais cambaleantes.
 
 
Lá na roça - uma espécie de Olimpo
de país subdesenvolvido -
habitam os heróis, que com seu
trabalho honesto e continuado
compõem o quadro do progresso.
Ali tudo é paz em meio à guerra
para viver. Mas ali o homem tem mais alma.
 
Guidoval é um coração tão grande
que tem artérias e veias; estas estradas
Levam o seu sangue a outras terras
e trazem os seus filhos distantes
ávidos de chegada.
Guidoval é coração.
 
 
A melhor maneira de um povo
sentir a sua cidade, de viver a sua cidade,
é saber por onde anda.
As ruas têm seus nomes
mas o carinho do povo
lhes põe apelidos. Nada mais familiar
e expontâneo que o apelido.
O povo batizou suas ruas.
Rua do Campo, Fundão , Vai-e-Volta,
Rua do Alto ... um compêndio de história
e poesia que o povo palmilha
indiferente às imposições da História.
A vida acontece. A história é criada.
O povo acontece espontaneidade em Guidoval.
 
 
É meio-dia e a igreja anuncia
a outra etapa, que será pouco diferente da primeira.
Guidoval não se assusta com a Vida.
Tudo é movimento calmo nas ruas
e seus tipos populares são documento importante
e cartão de visitas, que deixam nos corações
memórias mais vivas que folhetos turísticos.
O preto-velho "Toniquinho" sorri seu sorriso
de criança e tem sempre um cumprimento amigo.
A flauta do "Frenderracha" não se cansa
de falar de amor às mocinhas de fora.
Tudo é sentido, é válido, é autêntico.
Até aquela velhinha que esmola a vida
e cuja cegueira não atingiu o coração.
Os tipos populares são pedacinhos
da história de Guidoval.
 
 
Sem muito alarde, o dia começa
a querer descansar.
Seu trabalho foi grande, foi árduo
e amanhã ele tem que estar de pé outra vez.
Enxada às costas, o lavrador
deixa no ar um rastro de fumaça
da palha e do fumo
que ele mesmo plantou.
É a forma sublime de mandar ao céu
o fruto do seu trabalho.
Lá vai ele para a sua casinha tosca
repousar uma noite de esperança.
 
 
O "Fundão" se enche de formas e cores.
Tudo é presença e simplicidade.
As meninas vêm em busca de amor
e trazem para dar, sorrisos de amor.
Se tem festa, Guidoval é festa.
A igreja abriga no seu seio
todo esse povo que não se esquece de Deus.
Enquanto isso a bandinha lá fora
suspira dobrados reluzentes.
A banda é outra marca eterna
dessa cidade encantada.
Do mais moleque trompete
ao sisudo contrabaixo, tudo pulsa
e respira como um só coração.
E a música congrega gerações em busca
de um mesmo fim. Mas se a morte rouba
um de seus filhos, todos choram
a perda do irmão que se foi.
 
 
A noite, da mesma forma que chegou,
vai saindo de mansinho à medida
que as meninas vão deixando o "Fundão".
Lá pelas dez tudo é repouso, tudo ressona
com a calma dos bemaventurados.
Restam lá fora postes cochilando
uma luz amarelada, uma vigilância
de árvores imóveis, um silêncio
gostosamente calado. E eu nunca dormir porque tenho
um dever. Eu resto andando e pensando e rezando baixinho :
Dorme, meu Guidoval-criança, dorme nos braços
De sua mãe Sant`Ana ...

Guidoval, 25.7.67