E por falar em serenata…
(parte 2)

Marcus Cremonese de Sydney, Austrália

"Poetas, seresteiros, namorados, correi,
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar"
(Gilberto Gil)

Minhas serenatas com o Fabiano invariavelmente começavam lá no Sacramento, em frente à casa da tia Maria do Carmo. Em geral, tanto as primas como as outras garotas se limitavam a ouvir caladinhas dentro de casa. Muitos pais virariam bicho se imaginassem suas filhas falando pela janela com "vagabundos", e de madrugada. Mas ali, a Dalva, a Carminha e a Vera com freqüência quebravam o silêncio e faziam seus pedidos, caso a gente fosse saindo de fininho e se esquecendo de alguma música favorita. Tio Virgílio fingia-se surdo.

Não havia uma rota pré-estabelecida, mas todas as moçoilas eram contempladas com a nossa música. Do Sacramento o Fabiano me puxava pra Rua 5 de julho, a meio caminho do Vai-e-Volta, pois ali ele tinha um “cravo encostado”…

Em recente troca de e-mails com o Fabiano, mencionei este detalhe e ele me respondeu nessas palavras:

“Quanto ao "cravo encostado" na rua 5 de julho, caso não seja anti-ético citar publicamente o nome da pessoa, sempre me orgulhei do amor primeiro que dediquei à Miriam, filha da dona Luzia Reis. Não deu em nada, mas o amor é mesmo assim, não tem estação de chegada. Continuo então até hoje curtindo essa indescritível viagem que Deus me proporcionou. Sobrou, não esqueçamos, uma fissura na borda do meu violão, resultado de um tombo que levei na calçada da casa da minha amada, da minha musa idolatrada”.

Não, Fabiano, o amor nunca é antiético. Antiético é o ódio, é a guerra. O amor é vida. E suas palavras vão publicadas aí em cima.

Andávamos devagar, a pé, perambulando por toda a cidade. Era uma terapia. Eu dava asas aos pensamentos, respirava um ar frio e puro, cheirando a poeira e capim molhado, cheiros de noite. Anotava em pedaços de papel algum verso que brotava, para ser plantado em algum poema, mais tarde. Longe das janelas das musas, entre um gole e outro do cobertor de garrafa, a gente parava, comentava os erros e acertos da janela anterior, memorizava o repertório, planejava a nova parada. Havia damas que durante o dia nos encomendavam alguma música em particular, e seria um grande “furo” deixar de atender.

Também não é "antiético" citar aqui um Blue Moon que me foi pedido, sussurrado de dentro de uma janela. E eu — que vergonha! — não sabia tocar. Fiquei devendo. Passaram-se os anos. Hoje eu toco essa música com um arranjo mais para blues. Evidentemente aquela serenata e a tal donzela me vêm à cabeça. Assim, quando hoje canto Blue Moon o faço atendendo àquele pedido distante — antes tarde do que nunca.

O gênero intimista da Bossa Nova, embora eu só viesse a pensar nisso anos mais tarde, já estava se sedimentando ali; éramos dois, cada um com um violão, mas não tocávamos ao mesmo tempo, juntos, como nas jams que nos antecederam ou nos gêneros que se seguiram, como as rodas de pagode. Cada um cantava e se acompanhava, revezando as músicas. Nunca nos perguntamos por quê, era um acordo mudo, natural, espontâneo.

O silêncio e a guerrilha

Uma das preocupações era não fazer barulho, nem ao caminhar, e não dar a menor impressão de algazarra ou zoeira. Houve vezes em que um ou outro amigo se juntou a nós dois, como o Ronaldo Ribeiro, ardoroso fã de João Gilberto, e o Oscar Matos, com seu luzidio trumpete. Uma vez apenas, por sugestão de alguém e por precaução, avisamos a um delegado de fora, recém-empossado, que iríamos fazer serenata. Nessa noite sentimos algo estranho; a serenata com autorização perdeu a autenticidade.

A serenata é uma forma de guerrilha urbana e noturna. Exige preparo e agilidade para enfrentar pais de meninas, cães de guarda — e até delegados. Mas o encanto da conquista é indescritível e vale qualquer luta: é sabermos que pelo menos a nossa música "dormiu" aquela noite com uma donzela indefesa, enclausurada!

Nossas serenatas eram urbanas. Só tempos mais tarde, com a ajuda do Vanderlei Vieira, que andou saindo com a gente, é que deixamos o perímetro da cidade e fomos, de camionete, bater lá prás bandas do Sô Isaias Geraldo… temos assim certa “culpa” no casório do Vanderlei com a Imaculada. Umas duas vezes, do 25 para 26 de julho, véspera da grande festa da padroeira, acabamos a serenata seguindo a alvorada da banda, às cinco da manhã, regida pelo Zé Negueta. E numa dessas alvoradas, o Zé Frenderracha, tocando pratos, se distraiu olhando para nós, no momento em que os músicos pararam. Deu de peito nas costas do músico da frente e os pratos caíram. Na Rua de Santa Cruz, a única então calçada. E eu completei, numa explosão de riso e carinho: — solo de prato não vale, Frenderracha!

Cada serenata era um “causo” à parte. E meu relacionamento musical com o Fabiano foi rico em situações hilariantes. Uma delas: fim de julho eu voltava para Juiz de Fora. O aniversário do Fabiano é no princípio de agosto. Tio Manuelzinho comprara para ele o sonhado violão novo. Mas guardou-o, escondido, para só ser dado no dia do aniversário. Uma tortura para o pobre do meu primo, que tinha que tocar no violão velho enquanto eu estivesse por lá. Me lembro do seu desabafo: —“Marquinho, tou igual a São José: a cavalo e andando a pé”. Entrou em cena o bom senso, o pragmatismo, ou lá o nome que tenha. Toda noite o Fabiano “roubava” o violão do esconderijo do pai e saíamos para a serenata. No dia do aniversário, muito “surpreso” e contente, o Fabiano ganhou o violão novo e lhe deu o nome que tem até hoje: "São José". O mesmo que caiu na calçada da rua 5 de julho. Está lá nele a borda de madeira escalavrada que não me deixa mentir…

Já que nunca morei em Guidoval eu poderia cometer injustiça se, para concluir, fosse fazer uma lista das pessoas que mantiveram a serenata como um símbolo das noites de Guidoval — Diamantina fez da serenata o seu "apelido" oficial muitos anos atrás. Consultando o Dé posso com segurança registrar alguns nomes, muitos dos quais eu mesmo vi e ouvi nos tempos de criança, outros ouvi falar: Zé Afra, esposa e filhas, Zé Manga Rosa e o tio Zé Boióta, Zé Vieira (Xará), Zé Bento, Zé do Fio (Barão), Zé do Gil, João Vieira de Queiroz, Jeová, Sô Lau, Josias do Pombal, Bebeto Ramos, Landinho Estulano, Domingos Coelho, Alonso do Brás Bentin, Vicente do Dario, Edgard (Patachoca), Sinval Padeiro, Renatinho, Prof. Salim, Prof. Antônio Barbosa, Cláudio do Chiquito Galdino, Dr. Wilton Franco, Dr. Jorge Sobral Venâncio, Henrique da Amélia do Natalino Reis, mais a voz possante do Zé Cristiano. Outros, embora não fossem músicos, eram figuras constantes, como Jésus Fernandes, Joel do Coutinho, Cléber Oliveira, José Joaquim e Álvaro Nogueira, Tarcísio Cusati, Zagão do João Matos, Zequinha do Pedro Dias, para citar alguns.

Álvaro Nogueira, Dé Vieira, Virgílio Oliveira, Cláudio do Chiquito e Sinval (Natal de 1971) Sei que Dé do Zizinho, Virgilinho e seu irmão Luís, mais uma boa dúzia de rapazes dos listados acima continuou mantendo viva a serenata, esse bem cultural que atravessou gerações. No entanto a globalização — como um dos cavaleiros do apocalipse — vem galopando impiedosa, padronizando gostos e impondo a cultura do medíocre, fundamentada no consumismo. Não sou um fundamentalista que prega o banimento de novas expressões artísticas — nem mesmo algumas formas "artísticas" de indústria cultural, que surgem ao correr do tempo. Acho apenas que essas não deveriam simplesmente substituir uma outra, como a serenata. Triste — mas não surpreso — soube que até o funk derrubou a marchinha de carnaval em muita cidade do interior, nesse fevereiro passado!

Conclamo, portanto, a nova geração de "guerrilheiros" do Sapé a se unirem.
Não entreguem a rapadura, ou seja, não deixem a coisa chegar ao que Gil, de forma poética/profética, temia — porque antevia — lá pelos anos 60: "…talvez as derradeiras noites de luar."

Álvaro Nogueira, Dé Vieira, Virgílio Oliveira, Cláudio do Chiquito e Sinval (Natal de 1971).


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