O MUNDICO
Hoje nos deixou, até uma próxima oportunidade, uma das grandes personalidades da nossa Guidoval, um grande amigo de todos, Raimundo Nonato, o nosso querido Mundico.
Interessante é que as grandes personalidades de Guidoval não são Doutores ou grandes graduados. São pessoas em sua maioria muito simples, mas que deram a sua vida pela nossa cidade e aí vivendo e contribuindo de alguma forma para o progresso local e trazendo muita alegria aos seus conterrâneos.
Os que se formaram doutores, salvo engano, na sua totalidade moram fora e apenas carregam o título da cidadania guidovalense e pouco ou quase nada contribuem para o seu engrandecimento. Não que isto seja errado ou indevido. Mas contribuem para o engrandecimento das outras localidades que escolheram para desenvolver suas atividades produtivas.
Entre os mais simples eu destacaria o Elpídio, o Cael (Michael), o Manoel da Sá Joaquina, o Quirino, o Seu Manoel das Broas (não gostava do apelido), Zé Boiota e outros que dariam uma grande lista.
Outros, mais ilustrados como o Seu Teóphilo Brás que até estudou na adolescência no Colégio do Caraça. Contava ao meu pai e eu estava presente, ainda pré-adolescente, que levava até três meses a cavalo para chegar ao destino, acompanhado por tropeiros que levavam seus pertences em lombo de mulas. Este assinou como testemunha no registro do meu nascimento, juntamente com o Seu João Caetano.
O Seu Deoclécio Cattete, Tabelião e vereador da primeira legislatura da recém-criada cidade e avô de outra personalidade querida de todos, a Professora Dona Carmem Cattete, o Seu Sebastião Vieira de Andrade, também tabelião, o Seu Antônio Barbosa Neto, de diversas atividades como comerciante, dono de carro de praça, Coletor Federal em Guidoval, Nely Cunto Pereira, eletricista e Professor de Educação física do recém-criado Ginásio Guido Marlière. E outros tantos que também daria uma lista imensa, hoje, lamentavelmente, lembrada por poucas pessoas já com um bom número de aniversários concluídos.
Mas voltemos ao Mundico. O Mundico participou de várias maneiras das atividades da nossa cidade, e em todas elas deixando a sua alegria. Filho do Seu Tianinho e da D. Feínha, neto da D. Jovita e do Chico do Padre, alfaiate de profissão, possuidor de um humor bastante particular. Fazia graça com a fisionomia mais séria possível. Brincava com todo mundo levando alguns a fazerem coisas muito engraçadas, para os que assistiam e, às vezes, não muito para os que eram alvo da sua ação.
Quando éramos crianças, por volta dos nossos sete a dez anos, nós mesmos fazíamos a maior parte dos nossos brinquedos. A indústria ainda não produzia grande variedade e os existentes eram relativamente caros para os bolsos dos nossos pais. Assim, para a nossa produção utilizávamos diversos materiais como latinhas de sardinha, sabugo de milho, bucha de cerca e carreteis vazios.
A melhor fonte desses últimos eram os alfaiates da cidade: o Mundico, o Renato Ramos, Wilson Ribeiro e o Zé Negueta.
Para conseguirmos um carretel do Mundico tínhamos que fazer alguns malabarismos que o deixavam rir às gargalhadas. Lembro-me de dois episódios ocorridos.
Certa vez comigo, só ganharia o carretel se conseguisse fazer o seguinte: colocar a mão direita sobre a orelha esquerda, passando por cima da cabeça, a mão esquerda segurando um carretel apoiado no chão, junto à porta de entrada da alfaiataria, e girar a passos curtos da direita para a esquerda dando dez voltas consecutivas e depois, ereto, caminhar sem cambalear até a sua máquina de costura. Certamente não conseguíamos a façanha, mas ele ria a gargalhadas das nossas atitudes engraçadas e nos dava um ou dois carreteis.
De outra feita o Gersinho Occhi, garoto alto e esguio para a sua idade, para ganhar o seu carretel teve que passar entre as pernas de um tamborete baixo sem se segurar nele e sem derrubá-lo.
Em outra oportunidade o meu pai, o Dr. Mario, em seu consultório atendendo um cliente, era interrompido por alguém a mando do Mundico para buscar um martelinho de desempenar vidro que ele lhe havia emprestado.
De outra feita, estava em passeio na cidade o Maurício do Seu Nhonhô Queiroz que adentrara a alfaiataria. O Mundico que ficava numa visão ampla da rua, avistou um certo cidadão que já estava a alguma distância descendo a rua do Fundão e pediu ao Maurício para chamá-lo para entregar-lhe algo. O Maurício perguntou o nome do rapaz e o Mundico respondeu: não sei o seu nome, mas o chamam de toureiro. Quando o Maurício gritou toureiro, o indivíduo partiu para ele com um porrete e teve que correr um bocado. O Mundico ria à beça, como sempre.
Esse era o Mundico. Por outro lado, participava dos eventos festivos da cidade, salvo engano tocava tuba na Banda de Música e jogava futebol no Time do Cruzeiro local.
Tinha uma bicicleta antiga que a sua sobrinha Maria das Graças disse em seu livro chamar-se “Camelo”. Teve também um fusca azul.
Nos últimos tempos trabalhado como alfaiate transferiu sua alfaiataria da rua do Fundão para um cômodo da sua casa onde se aposentou e morou até ser transferido já bem idoso para uma casa de idosos na cidade de Guarani, onde moram seus sobrinhos.
Durante todo seu tempo em Guarani teve a esperança da conclusão das obras do Asilo de Guidoval para retornar à sua terra, muito querida para ele, e onde mora, talvez o seu melhor amigo, o Toninho Estulano.
Time do Cruzeiro de Guidoval- 1947
Também era o carreiro oficial do casamento do Jeca na antiga festa junina em Guidoval, também conhecida na época como Festa da Chita.
Na foto abaixo, dos que me lembro, o número 1 é o Mundico. Em destaque os noivos representados pelo Renato Ramos e a Professora Nice Baião (2e 3), D. Eurides (4), Oswaldo Occhi (5), Tio Mariozinho Marotta (6), Bebeto Ramos (7), D. Emi Coelho (8), Tia Gildinha (9), Licinha Maciel (10), Zé Negueta (11), Memélia Ramos (12) e logo atrás desta, sem número, o Landinho Estulano.
Festa da Chita em Guidoval
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Minha última visita ao Mundico, juntamente com minha esposa Leise, minha irmã Luiza Amélia e minha prima Maria do Carmo
No último mês de maio, estive em Guidoval e fui até Guarani para uma visita ao Mundico. A contrário do que me disseram, nessa visita ele não chorou e, muito pelo contrário riu à gargalhadas, como antigamente, enquanto eu lia para ele uma estória que havia escrito sobre o Elpidio. Ele recordava com saudade desse personagem que muito alegrou a todos nós enquanto viveu.
Que bom que pude fazer-lhe recentemente essa última visita, com muita amizade, consideração e muito boas lembranças de todas as nossas vivências.
E, como disse Shakespeare em seu monólogo O Menestrel, “sempre devemos nos despedir das pessoas que amamos com palavras carinhosas: pode ser a última vez”. E mais uma vez foi.
Brasília, 16 de junho de 2016
Plinio Augusto de Meireles