Participação do Professor Antônio Barbosa na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
http://legis.senado.gov.br/sil-pdf/Comissoes/Permanentes/CRE/Atas/20110530EX022.pdf
Senador Collor falando: Passo a palavra agora ao
Professor Doutor Antônio Barbosa, Consultor Legislativo do Senado Federal.
O SR. ANTÔNIO
BARBOSA –
Sr. Presidente, Srs. Senadores, senhoras e senhores, caríssimos colegas de
Mesa, eu não me perdoaria se, logo na minha primeira intervenção, no início
desta minha breve exposição, eu não fizesse um registro que para mim, como
cidadão, sobretudo como historiador, é da mais alta relevância.
Sempre me incomodou, na história republicana
brasileira, uma certa timidez do Congresso Nacional em relação aos temas da
política internacional e das relações exteriores.
Quando nós analisamos o Parlamento brasileiro do
século XIX, é claro que num contexto histórico completamente diferente e
fortemente marcado pela exclusão da maioria absoluta da população das relações
políticas, nós observávamos que essa elite política do Império estava antenada
com o mundo, e trazia para os debates, tanto na Câmara quanto no Senado do
Império, os grandes temas internacionais.
Aconteceu conosco, na República, algo um pouquinho
inquietante, para usar a expressão já utilizada pelo Presidente Collor. Na
medida
E eu digo inclusive que em alguns pouquíssimos
momentos como o mais importante
desses temas.
Para que possam entender melhor o que estou
dizendo, eu falo da maneira pela qual a política externa entrou na agenda
brasileira, entre o final do ano de 1962, depois das eleições de 3 de outubro
de 1962, talvez as mais marcantes do período iniciado em 1945, sobretudo pelo
fortíssimo caráter ideológico do dos embates daquela época, até início de abril
de 1964, estávamos vivendo aquilo que o chanceler Afonso Arinos lançou no
Governo Jânio Quadros, mas que foi efetivamente consolidado no Governo do
Presidente João Goulart: a política externa independente.
Só para que vocês tenham uma idéia do que estou
dizendo, quando fui fazer a minha tese de doutoramento, eu analisei cerca de
600 discursos pronunciados no Congresso Nacional, entre outubro de 1962 e abril
de 1964, todos eles sobre política externa, e isso me permitiu concluir o meu
trabalho, talvez o único valor que ele tenha, para mostrar que, empiricamente,
dois temas levaram à ruptura institucional de 1964: o da reforma agrária e o da
política externa independente. Ambos absolutamente circunstanciados,
contingenciados pelo embate ideológico daquele momento.
Mas são muito poucas as situações em que a política
externa foi trazida para o primeiro plano da agenda política brasileira, daí o
registro que quero fazer: o que a Comissão de Relações Exteriores do Senado
brasileiro está fazendo neste momento é uma tentativa que não é fácil,
reconheço, mas importantíssima para fazer com que nos tornemos mais próximos da
contemporaneidade e tentar fazer com que o Parlamento brasileiro também discuta
não apenas questões de política internacional, mas a forma pela qual nosso País
vai se inserir nesse contexto internacional.
Daí eu querer iniciar minhas palavras cumprimentando
a Comissão de Relações Exteriores do Senado por essa decisão.
O segundo aspecto que preciso apresentar, talvez
como pressuposto, é o fato de que eu não sou nada mais do que um professor de
história que há 40 anos, exatamente 40 anos, faz da sua vida profissional a
sala de aula, o seu grande palco, o seu grande cenário. Nesse sentido, eu não
resistiria lembrar que o hoje Senador Cristovam Buarque, quando reitor da
Universidade de Brasília, fez a mim e a um série de outros, sem o saber e sem
denominar as pessoas, um grande elogio, de que a universidade precisa de
grandes pesquisadores, mas também precisa de professores que gostem de dar
aula, que gostem de estar em sala de aula.
É isso que eu faço.
Fiquei feliz de ter participado de uma rodada de
apresentações nesta audiência com especialistas. Na verdade, o enfoque que eu
vou dar nesta minha apresentação estará rigorosamente ligado pela única coisa
que poderia justificar a minha presença aqui, que é o fato de tentar
compreender a trajetória das sociedades, sobretudo a trajetória histórica da
sociedade brasileira.
Historiador não julga, historiador tenta
compreender. Compreender não significa aceitar. Como professor de história
contemporânea, eu tenho horror ao nazismo, mas sou obrigado a tentar compreendê-lo
como um dos mais importantes fenômenos históricos da contemporaneidade.
O segundo pressuposto que preciso externar para
vocês é o de que na minha concepção, toda história contemporânea, isto é, todo
o esforço que se faz no sentido de compreender a história vai sempre nascer da
pergunta que se faz hoje. São as nossas perplexidades, as nossas questões, as
nossas preocupações, no momento em que estamos vivendo, que conduzem a nossa
pergunta ao passado.
O historiador precisa do passado para tentar
responder a essas questões que serão sempre suscitadas pelo presente.
Exatamente por isso a história muda.
Exatamente por isso ela é dinâmica.
É bastante comum pais e mães coçarem a cabeça e
dizer: “Meu Deus! No meu tempo de escola eu aprendi assim. Agora, meu filho
está aprende assado.” É isso mesmo, porque aquele foi um tempo; outro é hoje.
As dúvidas e as necessidades, as perguntas que se faziam há trinta, quarenta
anos não são, necessariamente, as mesmas que fazemos hoje.
Exatamente por isso – e esse é o terceiro
pressuposto que eu diria teórico
– acredito que exista algo que distinga, que
singularize, que identifique o historiador em
relação a todos os seus colegas da área de Ciências
Humanas e Sociais, sejam sociólogos, antropólogos, economistas,
internacionalistas, enfim, todos eles. E o que nos distingue? O fato de que nós
não sabemos fazer absolutamente nada fora da dimensão temporal. Para nós, o
nosso objeto, quer dizer, a razão de ser do nosso ofício é tentar compreender a
ação dos homens e, portanto, a ação das sociedades no tempo.
Não fugimos jamais da cronologia.
Ao fazer essa observação inicial, parto exatamente
para a China. Tenho certeza – e é uma das poucas que posso ter – de que a China
é certamente o maior exemplo de uma sociedade, de um país que se organizou,
politicamente falando, que não tem rivais em termos de longevidade e de
permanência. São cerca de cinco mil anos de história de uma mesma sociedade.
Porque alguém pode argumentar: mas o Egito vem da antiguidade! Mas este Egito
de hoje não tem nada a ver com o Egito antigo. Alguém poderia falar da
Mesopotâmia. Será possível identificar nos assírios, nos caldeus e nos
babilônios alguma coisa com o Iraque de hoje? Não seria. A China é. É o único
caso de longevidade e de permanência que vai chegar a essa dimensão de cinco
mil anos.
Tem importância lembrar isso aqui? Tem, sim, até
para entender o que a China está fazendo neste momento em termos de inserção
internacional.
Para começo de conversa, eu acho que é impossível
tentarmos entender a China – que, como foi dito aqui, é uma cultura
completamente diferente, uma forma de percepção do mundo e da vida
completamente diferente da cultura ocidental –, se nos apartarmos da
cronologia, da temporalidade que marca a história chinesa, a longa duração.
Se você me permite, vou fazer uma breve
interrupção, porque tem muito a ver com o que estou falando neste momento.
No seu livro de memórias políticas, o Presidente
Fernando Henrique Cardoso lembrou de um episódio que para ele foi muito
marcante. Ele foi procurado pelo Presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos,
para que ele, como Presidente do Brasil, fosse ao Presidente da China Hu
Jintao, para intermediar um problema sério naquele momento, a prisão de alguns
norte-americanos. E lá vai Fernando Henrique Cardoso conversar com Hu Jintao.
Conversa vai, conversa vem, conversa vai, conversa vem, o Presidente brasileiro
certamente falava da ansiedade norte-americana em ver aqueles seus compatriotas
libertados, o Presidente chinês vira para o Presidente do Brasil e faz a
prosaica pergunta: “Presidente, quantos anos têm os Estados Unidos?”
Evidentemente que, na hora, Fernando Henrique
percebeu e disse: “É, a independência é de
Tenho a impressão de que essa longevidade, essa
permanência está diretamente ligada ao fato de que a China foi, na minha
opinião, a primeira sociedade que, ao se organizar politicamente, compreendeu a
importância insubstituível de uma grande e bem organizada burocracia de Estado.
Aí, tenho que me remeter a uma figura quase que mitológica, mas que existiu,
que viveu no século VI aC, portanto contemporânea de Sócrates, aqui na cultura
ocidental, chamada Confúcio.
A partir das ideias confucianas, dos valores com os
quais ele vai trabalhar, aconteceu algo que normalmente não acompanha os
filósofos. O filósofo está muito ligado à reflexão e, portanto, muito ligado à
teoria. Mas com as ideias do filósofo Confúcio o que aconteceu? Uma adequação,
uma convergência entre as suas ideias, valores e princípios que ele defende com
a realidade prática de organização do Estadochinês. É exatamente isso que vai
dar à China essa capacidade de sobreviver ao longo do tempo e, inclusive,
sobreviver a mudanças, algumas vezes traumáticas, de seus governantes.
Nesse ponto, entro no aspecto que é fulcral para se
compreender o etos, a própria cultura chinesa, que é exatamente a sua concepção
de tempo completamente diferente da nossa concepção de tempo aqui no Ocidente.
Aqui no ocidente, por exemplo, qualquer criança,
quando vai para a escola e vai ter as primeiras aulas de história, aprende,
entre outras coisas, que existe uma temporalidade, existe uma cronologia e que
a história da humanidade é dividida em quatro grandes eras, em quatro grandes
etapas: Idade Antiga; Média; Moderna; e Contemporânea. Ora, subjacente a isso,
o que está presente? É a ideia da linearidadedo tempo, que começa lá do fundo
dos séculos, para chegar aos dias de hoje. É uma concepção linear de tempo. Na
China, não. A concepção de tempo na China é circular, que vai de um ponto,
avança, acontece, transforma-se e volta a um ponto semelhante.
Exatamente por isso, como se conta o tempo na
China? Pelas dinastias, a dinastia que chega, a dinastia que cai um dia e que
vai ser, então, substituída.
É assim, com essa ideia de permanência que leva,
politicamente falando, a uma concepção meio conservadora de Confúcio, que chega
à China nos dias de hoje.
É uma presença tão forte, sob ponto de vista
ideológico, que nem mesmo a grande ruptura que aconteceu em 1949, quando, no
dia 1º de outubro, a República Popular da China foi formalmente instituída, nem
ela consegue acabar com esses princípios confucianos.
Só para que vocês tenham uma ideia, quando o
Presidente Mao Zedong, em meados dos anos 60, desesperado porque está sentindo
que suas bases de apoio estão sumindo e que, de alguma forma, o controle total
e absoluto que ele exercia sobre os caminhos da revolução chinesa, esse
controle estava correndo o risco de desaparecer, ele lança a Revolução Cultura,
que foi um dos momentos mais trágicos da história da humanidade. É o momento em
que a barbárie vai sobreviver. E um dos
lemas que a mocidade, a juventude que seguia o
companheiro Mao berrava pelas ruas, pelas avenidas era exatamente esta: Morte
ao passado! Morte a Confúcio! Quer dizer, terminar Confúcio significava o
surgimento de uma China nova.
Bem, o resto da história vocês sabem. Em 1976, Mao
Zedong morre e a China vai começar, a partir daí, a tentar reconstruir uma
história de modernidade que vai acabar por chegar na África de agora, como em
tantos outros lugares.
Confesso que é vício de origem de historiador, o
historiador nunca se fixa no fato especificamente. Tenho uma imagem que é
simbólica, mas que traduz muito bem o que estou dizendo. Para nós,
historiadores, o fato é absolutamente fundamental.
Sem o fato, sem o acontecimento, existe ficção.
Existe qualquer forma de literatura, mas não é história. Mas, atenção, o fato
em si, sozinho, não consegue ser inteligível.
Ou seja, o fato só se torna compreensível quando
ele é contextualizado e quando ele é jogado num dimensão temporal mais larga.
Nesse caso, para falar da China na África, vou me
reportar a um acontecimento que marcou a segunda metade do século XX: 1955,
Bandung, na Indonésia.
O que aconteceu de extraordinário naquele local e
naquele momento?
Pela primeira vez, as vozes que emergiam de um
mundo novo, que é o mundo que, pela primeira vez, em 500 anos, acabava com a
centralidade da Europa – e esse foi, talvez, o maior resultado da II Guerra
Mundial, que terminou em
Pois bem, dez anos depois, em Bandung, essas forças
sociais, políticas, emergentes da Ásia e da África vão se reunir para tentar
encontrar um rumo, um discurso que fosse comum e que, de alguma forma, dissesse
aos dois pólos de poder mundial daquela época, Moscou e Washington, que deveria
haver uma outra alternativa de não alinhamento, de não submissão, de não
sujeição absoluta a esses síndicos que haviam dividido o mundo em dois grandes
condomínios.
Pois bem, ali em Bandung, está uma figura
representando a China chamado Zhou Enlai, na minha modesta opinião, um dos
grandes estadistas que o século XX conheceu e que, provavelmente, foi o sujeito
que, ao lado de Mao Zedong, vai conferir à revolução chinesa uma certa
visibilidade e elementos para participar do sistema político internacional,
pois lá em 1955, bem mais jovem Bandung, ali, pela primeira vez, anuncia para
as forças emergentes afro-asiáticas quais seriam os cinco princípios que
norteariam a política externa chinesa. Se você for observando esses cinco
elementos, vai identificar que eles estão profundamente contextualizados com os
anos 50, com os anos 60 e chego até os anos 70: respeito pela soberania, não
agressão, não ingerência, igualdade, benefícios mútuos.
É claro que aqui existe uma carga ideológica muito
grande. Embora, neste momento, a China ainda não tivesse rompido com a União
Soviética, ela estava dando sinais muito claros de que ia querer ter um espaço
seu, que lhe permitisse fazer parcerias e algum tipo de cooperação com o mundo
que tentava sair da pobreza, da miséria, do atraso, do subdesenvolvimento. Há
um componente ideológico que hoje não existe, mas há um substrato dessa
política externa chinesa que Zhou Enlai explicitou em 1955 e que está presente
ainda hoje.
Estou chegando ao fim. Gostaria de lembrar algo que
está muito ligado à história da China, a ideia de que a China sempre gostou de
se isolar. Não. Eu reconheço que há na cultura chinesa aquela sensação de
superioridade. Alguns chegam a falar de arrogância, de prepotência. A China
talvez seja o único caso de um país que não tem nome, o nome dele é fantasia, é
o país do centro, o país do meio, o Império do Meio. Quer dizer, nós somos o
centro do mundo, o que está fora de nossos
limites...
E nesse sentido a Grande Muralha é muito mais
simbólica do que real, aquilo nunca segurou algum tipo de invasor, mas ela
simbolicamente iria representar os limites do Império do Meio.
Mas, mesmo assim, a China nunca deixou de manter
contato com o mundo, desde a antiguidade. Se assim não fosse, a chamada Rota da
Seda não teria a importância que teve. E, olha, a Rota da Seda, é claro, apesar
do produto que lhe dava o nome, era muito mais do que isso, eram vários,
infinitos caminhos que ligavam a China a outras partes do mundo conhecido,
caminhos por onde passavam produtos, sim, é o caso da porcelana, da seda
chinesa, recebendo produtos de fora, mas também ideias, inclusive ideias
religiosas.
O que a China está fazendo agora, a partir da
ascensão de Deng Xiaoping, de certa maneira – é a percepção que eu tenho –, é
um reencontro com sua própria história. Em que sentido? Até mais ou menos
que foi mais grave, o que foi mais dramático, a
partir do momento em que, pela primeira vez na história da humanidade, a
história se torna verdadeiramente global, verdadeiramente mundializada, a
partir do ocidente. No século XIX, embora formalmente não tenha se tornado
colônia, ela foi massacrada, ela foi humilhada de todas as formas, a partir de
1842, e isso se completa na década de 1880 e 1890.
Num certo sentido, acho que Deng Xiaoping está na
verdade acionando o motor que faz a China reencontrar-se com seu passado. É
imperialismo? Essa é a grande questão da ação chinesa na África. Não sei. Não
sei se a questão central é essa, mas me dá vontade de comparar dois
acontecimentos. Em
O SR PRESIDENTE (Fernando Collor. PTB – AL) – Muito
obrigado,
Professor Doutor Antônio Barbosa, Consultor
Legislativo do Senado Federal.
O Professor Doutor Antônio Barbosa citou aqui a
questão do tempo. Em algum momento, durante uma dessas audiências que aqui
realizamos, nos foi trazida a frase pronunciada por um diplomata indiano.
Quando questionado por um empresário brasileiro que manifestava a sua ansiedade
de resolver logo o assunto que já o trazia ali pela enésima vez, o diplomata
indiano respondeu a ele com a seguinte frase: “A diferença entre vocês e nós é
que vocês, ocidentais, são donos de todos os relógios do mundo, e nós somos donos do tempo.” Então, é
mais ou menos dentro desse modo de
perceber a cadência dos acontecimentos do mundo que
tem a China, que aqui nos foi
trazido pelo Professor Doutor Antônio Barbosa.